quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O patinho que não aprendeu a voar-Rubem Alves


Recomendaçao do livro "O patinho que não aprendeu a voar"

de Rubem Alves para adultos e crianças.

Texto : Ensinando tristeza

Fui apresentado à poesia da Helena Kolody poucas semanas atrás. Foi uma descoberta que me trouxe alegria. Não porque seus poemas sejam alegres. Todos eles têm uma pitada de tristeza. A Adélia sabe que o que é bonito enche os olhos dágua. A beleza vem sempre misturada à tristeza. Na coleção, gostei desse mínimo poema: “Buscas ouro nativo entre a ganga da vida. Que esperança infinita no ilusório trabalho...Para cada pepita, quanto cascalho” (Helena Kolody, Positivo, Curitiba).
Gosto de ler as Escrituras Sagradas. Mas leio como quem garimpa ouro. Para se encontrar uma pequena pepita quanto cascalho há de se jogar fora! Acho até que foi arte de Deus... Foi ele mesmo que misturou cascalho e pepitas, prá separar os maus dos bons leitores. Os maus leitores não sabem separar as pepitas do cascalho...
Nas minhas garimpagens encontrei essa pepita: “Melhor é a tristeza que o riso. Porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração.”
Esse texto me apareceu na memória quando eu pensava sobre aquela pergunta sem resposta que deixei ao final do meu último artigo: “Como se pode ensinar compaixão?” A compaixão é triste? Ensinar compaixão será ensinar a tristeza? Tristeza será coisa que se ensine? Haverá uma pedagogia da tristeza? Estranho pensar que um professor, ao iniciar o seu dia, possa dizer para si mesmo: “Vou ensinar tristeza aos meus alunos...” Eu mesmo nunca havia pensado nisso. E todos os terapeutas, não importando a sua seita, em última instância estão envolvidos numa batalha contra a tristeza. E agora eu digo esse absurdo, que tristeza é prá ser ensinada, para fazer melhor o coração.
Os poetas me entendem. A poesia nasce da tristeza. “Mas eu fico triste como um por de sol quando esfria no fundo da planície e se sente a noite entrada como uma borboleta pela janela”, escreveu Alberto Caeiro. E conclui: “Mas minha tristeza é sossego porque é natural e justa e é o que deve estar na alma...” Tristeza natural e justa, que deve estar na alma!
Num outro lugar Fernando Pessoa escreveu algo mais ou menos assim: “Ah! A imensa felicidade de não precisar de estar alegre...” Existe uma perturbação psicológica ainda não identificada como doença. Ela aparece num tipo a que dei o nome de “o alegrinho”. O alegrinho é aquela pessoa que está, o tempo todo, esbanjando alegria, dizendo coisas engraçadas, e querendo que os outros riam. Ele é um flagelo divino. Perto dele ninguém tem a liberdade de estar triste. Perto dele todo mundo precisa estar alegre... Porque ele não consegue estar triste, o alegrinho não consegue ouvir a beleza dos noturnos de Chopin, nem sentir as sutilezas da poesia da Sophia de Mello Breyner Andressen e nem gozar o silêncio da beleza do crepúsculo. Porque ele está sempre alegrinho, na sua alma não há espaço para sentir a compaixão. Para haver compaixão é preciso saber estar triste. Porque compaixão é sentir a tristeza de um outro.
Contei do menino que chorou ao ler a estória do O patinho que não aprendeu a voar. Aconteceu assim: o seu pai comprou o livro esperando que ele fizesse o seu filho dar muitas risadas. Voltou no dia seguinte muito bravo. Trazia o livro na mão, para devolvê-lo. Ao invés de dar risadas, ao final da estória o seu filho pôs-se a chorar. A estória é, de fato, triste. Eu a escrevi para o meu filho que estava passando por uma crise de vagabundagem. O seu prazer nas vagabundagens era tanto que ele não queria saber de aprender. O patinho também não queria saber de aprender. Não pode voar com seus irmãos quando chegou a estação das migrações.
O menininho tinha razões para chorar? Não. As razões do seu choro não eram dele. Eram do patinho. Ele sofria o sofrimento do patinho. O seu coração batia junto ao coração do patinho. Mas o patinho não existia. Era apenas um personagem inventado de uma estória do mundo do “era uma vez”. E o menino sabia disso. Mas, a despeito disso, ele chorava. Aqui está um dos grandes mistérios da alma humana: a alma se alimenta com coisas que não existem.
Eu havia levado minha filha de seis anos para ver o E.T. Ao fim do filme ela chorava convulsivamente. Jantou chorando. Resolvi fazer uma brincadeira: “Vamos no jardim ver a estrelinha do E.T!” Fomos, mas o céu estava coberto de nuvens. Não se via a estrelinha do E.T. Improvisei. Corri para trás de uma árvore e disse: “O E.T. está aqui!” Ela me disse: “Não seja tolo, papai. O E.T. não existe! Contra ataquei: “Não existe? E porque você estava chorando se ele não existe?” Veio a resposta definitiva: “ Eu estava chorando porque o E.T. não existe...”
Volto então à pergunta que fiz sem saber a resposta. O menino chorou ao ler a estória do patinho. Mas o patinho não existia. Minha filha chorou ao ver o filme do E. T. Mas o E.T. não existia. Pensei então que um caminho para se ensinar compaixão, que é o mesmo caminho para se ensinar a tristeza, são as artes que trazem à existência as coisas que não existem: a literatura, o cinema, o teatro. As artes produzem a beleza. E a beleza enche os olhos dágua... Como dizem as Escrituras Sagradas, “com a tristeza do rosto se faz melhor o coração.”

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